Antes de fazer qualquer julgamento sobre esta imagem,
conheça a história e descobrirá que a divindade celebrada no dia 25 de dezembro
não se resume ao homem Jesus, mas à fusão e incorporação de vários Deuses
solares muito anteriores ao Cristo que hoje é conhecido.
Se voltássemos 2 mil anos no tempo, Roma estaria festa. Eram
os preparativos para os festejos do Deus solar Mithra, o filho do grande Deus
Ahura Mazda que simbolicamente vencia o Touro. Seu aniversário era celebrado
nos dias 25 de dezembro, ou seja, 3 dias depois do solstício de inverno do
Hemisfério Norte. Em diversas mitologias pagãs ancestrais, o solstício de
inverno representava o nascimento do Deus-Sol. Afinal, é neste momento que o
sol encontra-se no ponto mais distante com relação à latitude da Terra e por
isto ocorre o fenômeno da noite mais longa e escura do ano. À medida que o sol
vai aproximando-se de seu ponto mais alto visto a partir da Terra, ocorre o
fenômeno oposto: o dia começa a ficar mais longo até que no solstício de verão
ele chega ao apogeu da iluminação no dia mais longo do ano. E assim, neste
ciclo infinito, os antigos comemoravam os ciclos solares com os mais variados
festejos, temperados pelos elementos culturais e geográficos de cada povo.
Roma sempre fora um império que promovia a tolerância e a
liberdade religiosa, mas isto se tornou um problema para os planos de dominação
patrícia, pois as revoltas regionais baseavam-se nas identidades oriundas das
religiões provinciais. O imperador Constantino pediu que seus correlegionários
pesquisassem qual seria a melhor maneira de criar uma ideologia suficientemente
forte para manter as províncias romanas coesas e eles chegaram à conclusão de
que o cristianismo seria uma religião adequada a tais fins, desde que
devidamente adaptada.
Constantino formulou uma lenda em torno de sua conversão ao
cristianismo e no ano de 325, realizou um concílio com os bispos aliados do
projeto imperial. Estes bispos modificaram completamente o cristianismo,
embutindo à figura de Jesus diversos elementos pagãos. Foram escolhidos 4
evangelhos para dizer a "verdade incontestável" da nova religião e
todos os outros seriam considerados "apócrifos" e, portanto,
proibidos, queimados e banidos sob pena de morte para os que os preservassem.
Jesus, que fora um judeu reformista do século I, deveria ser completamente
modificado de sua originalidade e os livros que o descreviam passaram a ser
adulterados para coadná-los ao projeto romano. Nos evangelhos reinventados,
foram incluídas passagens que exaltassem Roma tais como "dai a César o que
é de César", a lavagem de mãos de Pilatos e elementos de outros profetas
ou divindades foram atribuídos a Jesus. Por exemplo, Apolônio de Tyana, o
mensageiro do Deus Apolo, era conhecido por multiplicar os peixes, transformar
vinho em água e ressuscitar mortos.
O calendário oficial também começaria a ser modificado. As
festas associadas aos Deuses pagãos começaram a ser cristianizadas, num
processo que durou quase 2 milênios. Ao mesmo tempo em que se destruía a
memória pagã, embutia seus símbolos e significados no cristianismo, a religião
oficial do império, criada para atender aos interesses da elite escravocrata
romana. Um banho de sangue varreu a Europa, norte da África e Oriente Médio
para a imposição do cristianismo e com o édito do imperador Teodósio, todos os
cultos pagãos foram proibidos, passando a ser considerado "bruxaria"
e, portanto, passível de pena de morte.
Mas não se consegue destruir facilmente algo que está
profundamente enraizado, mesmo por aqueles que tenham o monopólio das armas e
da violência. Assim, era preciso desconstruir os cultos antigos e criar algo
que fosse abjeto e assustador, um personagem que seria a base para a destruição
dos cultos pagãos: o diabo. Este ser deveria incluir nele características dos
Deuses pagãos e a referência seria o Deus greco-romano Pã, com chifre, casco e
cavanhaque de bode. Pã, que era o Deus da alegria, da natureza e dos prazeres
da vida, foi convertido no oposto ao Cristo inventado, que era descrito como
sério, assexuado e símbolo da dominação da cidade sobre o campo. A nova
entidade maléfica incorporaria também o tridente de Posseidon, o popular Deus
dos mares. Pelos quatro ventos a igreja espalho que Pã morrera e que em seu
lugar assumira o demônio que não tinha a beleza e a alegria do Deus-bode, mas a
maldade de um ser que representava tudo que deveria ser evitado.
Com a queda do império romano, a igreja católica manteve as
estruturas políticas e militares do Estado sob seu controle. Agora ela passaria
a desenhar a Europa medieval à sua imagem e semelhança, implantando o
feudalismo à medida que convertia reis e nobres, forçadamente ou baseada na
troca de interesses. A idade das trevas estava instalada e, com as grandes
navegações, chegaram ao continente americano e assim o cristianismo foi
implantado para colonizar o território e submeter os índios à vontade do
conquistador.
Esta imagem, portanto, resgata o "Cristo"
verdadeiro: uma combinação de Jesus com Mithra e outras divindades solares como
o Deus grego Apolo e o Deus egípcio Rá. Também reconcilia duas divindades
associadas ao amor, Jesus e Pã, sendo o segundo detentor de chifres que
representam a força animal, o poder natural. Esta é, portanto, a mais completa
e lúcida imagem para representar o Deus Sol que morre durante o outono e
renasce no solstício de inverno. É o Deus imolado, sacrificado, mas que triunfa
sobre as trevas. É o Deus que ao longo do ano percorre as 12 constelações do
zodíaco (a eclíptica), que pode ser chamada de 12 apóstolos. É a divindade que
oferece o sangue e a carne, como fazia o Deus Dionísio. É o Deus que tem uma
esposa, uma Deusa que é a Mãe-Natureza, que foi proibida de ser cultuada, pois
na nova religião o que vale são as leis do patriarcado.
Mas ainda há um problema que permaneceu nisto tudo. O
calendário cristão gregoriano foi criado para o hemisfério norte e enquanto lá
eles celebram o inverno, aqui vivemos em pleno verão. O natal aqui deveria
acontecer em torno de 24 de junho, quando se festeja o dia de São João. Para
completar, o capitalismo inventou o consumismo como signo desta data e,
portanto, pouco restou a originalidade desta festa.
Aos que tiverem a compreensão da natureza como sagrada e das
divindades solares como representação da força criadora da vida, esta imagem é
a mais bela representação do Deus que todo ano nasce, morre e ressuscita no
terceiro dia após o solstício de inverno.
Créditos da imagem: Caroline Jamhour.
Algumas indicações de leitura: Do ponto de vista do mito,
Mircea Eliade, Joseph Campbell e a enciclopédia chamada "Mitologia: mitos
e lendas de todo o mundo". Sobre o paganismo, Gerard Gardiner, Janet e
Stewart Farrar, Claudiney Pietro. Historiadores romanos antigos tem o Flavius
Josephus, Tito Livio e Plutarco, além do próprio Julio César. Dos
contemporâneos, Paul Veyne, Jean Pierre Vernant e Moses Finley. Sobre a Europa
medieval tem o Le Goff e o Perry Anderson. Filosofia: Nietzsche, Feuerbach,
Russell e Marx. Há algumas publicações da Folha sobre a história das religiões
e da bíblia que servem como introdutórias e também alguns compêndios da
história da igreja. O volume sobre o Império Romano da História da Vida Privada
possui boas referências. Um pequeno livro que vale a pena citar: "O diabo
no imaginário cristão" de Carlos Nogueira.
Indicações de documentários:
Os Rivais de Jesus (NatGeo); Zeitgeist (há alguns erros, mas
é um bom documentário); Augustus (sobre o Império Romano); Roma (ascensção e
queda).
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